Por Lavínnia Mota
Trovoadas são sentidas ao longe.
SER: Nossa história se inicia numa casa afastada; meio alaranjada, meio rosada. Nem muito alta, nem muito baixa. Organizada num formato peculiar. Fotografia, arte, literatura, música… toda expressão humana pode vir a ser encontrada neste recinto rodeado por uma paisagem naturalista (e espiritualista). O referido lugar pode ser um campo de poesia e, para adentrá-lo, basta ver. Num quarto, no terceiro quadrante da residência, numa rede branca, dormia de forma quase taciturna nosso ser em questão.
Perdoe-me pela falta de jeito, mas pela falta de apreço, chamarei tal ser de Alex. Apenas Alex. Com uma idade convencional, trajes corriqueiros e trejeitos comuns. Alex, como vocês bem podem perceber, sente o cheiro abrangente do tabaco e finalmente acorda (de maneira agitada).
HILDA HILST: Oh!? Então você está aqui.
ALEX: Estou?
HILDA HILST: Jazer tão facilmente, tão corriqueiramente e, ainda assim, deste modo. Eu fico besta!
O silêncio se instala. O único movimento perceptível provém do fumegar contínuo.
HILDA HILST: “Há sonhos que devem permanecer nas gavetas, nos cofres, trancados até o nosso fim. E, por isso, passíveis de serem sonhados a vida inteira”, Alex. Entretanto, cá está você. Também em busca de reconhecimento, criança? É, sei como é. Entende-me? Deve entender, tendo em vista o local de seu repouso. És ser um tanto rejeitado, ou até excluído, Alex?
Após uma ou duas tragadas, Hilda se levanta e se encaminha para a mata.
SER: Agora percebo que aquela senhora tremeluzia. Menina, Senhora, Mulher, Moça, Bebê; todas elas se manifestando de uma só vez. Intensamente deslumbrante, a figura caminhou por muito ou pouco tempo, por muitos ou poucos quilômetros. Por falta do que fazer, Alex se levanta da rede. Um pé, depois o outro. Estralando seu corpo, Alex testa sua musculatura. E tudo estava voltando ao normal, até que o tabaco foi sentido e, no fim das contas, perseguido.
Alex chega a uma clareira cujo centro é preenchido por uma grandiosa e virtuosa árvore; uma figueira. Em almofadas medianas, seres mascarados bebericavam vinho e produziam um certo burburinho. Alex já não sentia o tabaco de Hilda, pois percebia, na verdade, outros tabacos, pertencentes a outros seres. Seres estes que, vez ou outra, tendiam a se pôr de pé e a entoar interpretações.
TÉSPIS: Que venha o vinho. E junto a ele todos os prazeres possíveis.
Encarando a plateia, uma dupla de seres de pé se aproxima, zumbindo irregularmente e paralelamente.
NELSON RODRIGUES, com sua máscara de anjo obscuro: O artista tem que ser gênio para alguns e imbecil para outros. Se puder ser imbecil para todos, melhor ainda.
DIAS GOMES: Não há nada mais próximo do ódio do que o amor dos humildes pelos poderosos, o culto dos oprimidos pelos opressores.
ALGUÉM, cantarolando de um modo gargalhante: É que Narciso acha feio o que não é espelho.
Com trejeitos acuados e assustados, mesmo assim curiosos, Alex caminhou por toda a Assembleia. Gradualmente sua presença é percebida.
VOZES INDEFINIDAS: Quem é você? Você é quem? Quem é você…
ALEX: Me perguntem mais tarde; por ora, poderiam me dizer quem são vocês? Se puderem, ainda, me indicar o caminho para a morada solar…
Uma mulher, antes em pé, tal como Thêmis, encara Alex.
LEILAH ASSUMPÇÃO: Visitante, pensionista ou residente?
ALEX: AH? Bem, provavelmente uma espécie de visitante.
LEILAH ASSUMPÇÃO: É mesmo? E como chegou até aqui?
ALEX: Tabaco.
LEILAH ASSUMPÇÃO: Não foi pelo vinho? Sempre é pelo vinho. Sente-se. Pernas vão se quebrar. O ponto em questão é, na verdade, a voz. Ter voz, possuir o controle sob sua própria voz e opiniões; um livre arbítrio no qual a liberdade realmente esteja inserida.
HILDE HILST: Olhe em volta. Vamos nos manifestar. Esse é o processo pelo qual passamos para comprovarmos nossa existência. É algo totalmente humano. É o que fazemos. O tempo todo. Tirando as coisas mais… mirabolantes e íntimas para o mundo; eternizando memórias e fragmentos de “eu” nas diversas combinações que vinte e seis letras podem resultar.
PLÍNIO MARCOS: Eu não penso, por isso, consigo escrever.
ARIANO SUASSUNA: Arte pra mim não é produto de mercado. Podem me chamar de romântico. Arte pra mim é missão, vocação e festa. É viver. A tarefa de viver é dura, mas fascinante.
TODOS, quase que em uníssono, mas com entonações diferentes: Entende?
SER: Entender? Talvez não entendesse; mas verdadeiramente sentiu.
As luzes se apagam por quase um minuto. Reacendem com Alex em meio a plateia, ou de volta a sua rede, na casa do sol.
ALEX: Teatro. Substantivo masculino. 2. O ofício ou a arte teatral. 4. Literatura ou arte dramática. Espetáculo. Exibição do humano e do não-humano.
Uma vida é uma peça sem ensaios; no limite de todas as emoções e sujeita a todas as provações. Mas antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos, é melhor que você não se prive de ser outro ser; de sentir outro ser; de ver outro ser. O teatro, no fim das contas, é necessário, principalmente por se tratar de um lugar mágico, louco e, acima de tudo, expressivo. Diferente para cada um, e da mesma forma, um conector da humanidade.
Para uma figueira mística, eu pediria pela oportunidade de cada ser se encontrar num texto tão rico quanto o texto dramático.
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