Quantos "eus" te compõem?

No dia 20 de novembro de 2014, quinta-feira, nós, alunos dos nonos anos, assistimos a peça Só Eu Sou Eu, dirigida por Getúlio Góis. O elenco é composto por adolescentes que cursam o Ensino Fundamental e Ensino Médio: Danton Oliveira Normandia, Mychelle Fernanda Costa Gonçalves, Domitila Crispim Pietropaolo, Alvaro Tavares, Ana Clara Reis, João Vitor Galvão Lima e Murillo Shimdt Dias. 

Ao chegarmos no espaço da Trupe, nos deparamos com um algo diferente do que esperávamos. Nada de assentos e um palco acima de nós: havia, sim,os assentos, porém eles formavam um meio círculo em volta do palco que era bem mais próximo dos espectadores, situação que permitiu a quem estava assistindo acompanhar bem de pertinho os movimentos e expressões dos atores, além de interferências no cenário.

O espetáculo é dividido em quadros. Estes são resultado de improvisações feitas por cada um dos atores que criaram pequenas cenas a partir do que gostariam de expressar em forma de arte. No primeiro quadro, os atores começam criando composições com os próprios corpos e cadeiras de madeira vermelhas. O figurino é básico, camisetas brancas com desenhos feitos por um dos atores, João Vitor Galvão, e jeans. Ao mesmo tempo que eram feitas as composições, eram projetados em uma cortina atrás deles vários desenhos dos rostos dos próprios atores com cores e formas diferentes. A iluminação era mais opaca e permaneceu assim por boa parte do espetáculo. As composições pararam conforme a música instrumental que tocava foi parando. Os atores começaram a dizer frases sobre si mesmos, coisas que faziam parte da sua identidade. Começaram a discutir quem é quem e se outro pode ser eu também. Depois pegaram as cadeiras, colocaram na nossa frente, e começaram a dizer fragmentos do que eram, bem baixinho. Depois foram aumentando a voz até que estivessem gritando.

O segundo quadro foi encenado por três pessoas e o cenário que o grupo preparou eram três cadeiras. Um dos personagens nesse quadro está preocupado com alguma apresentação do trabalho. Os outros dois personagens falam de como é importante essa apresentação e que ele se saia bem. Parecem duas “vozinhas” dentro da cabeça do personagem que ficam pressionando-o e cobrando-o sobre tudo. Além dele mesmo, o personagem recebe cobrança da mãe, o que o deixa estressado e frustrado.

No terceiro quadro, os personagens mudam. A cena continua com as projeções de rostos, mas desta vez passam rápido e não conseguimos identificar quem é quem. Várias vozes falam junto e algumas se destacam. Elas pedem ajuda, socorro, falam de medo e salvação. Uma personagem entra, faz um avião de papel e começa a brincar com ele. Junto entra um outro personagem e os dois começam a ser perseguidos por um terceiro personagem que está com uma lanterna. Para se esconderem, a menina e o menino usam três cadeiras que estão dispostas pelo palco. Depois de um tempo sendo perseguidos, o homem que persegue acaba achando a menina. Quando a encontra, ele pega o avião de papel dela e o joga fora de maneira bastante agressiva. Depois, se senta em uma das cadeiras e a chama para sentar no seu colo. A menina reluta, mas ele insiste. Ela senta e ele começa a acariciar seu cabelo. A cena me remeteu a abuso infantil, roubo de infância, experiências e injustiças que deixam marcas para toda a vida.

Depois do término do terceiro quadro, os atores, sempre com o mesmo figurino, se dirigem à plateia e pedem um tema para fazerem uma dublagem da primeira cena. Foi sugerido o tema racismo. Os três que participaram da primeira foram à frente e outros três personagens sentaram na plateia e dublavam as falas dos atores que somente mexiam a boca. A história começou com um personagem reclamando sobre o atendente de um supermercado por ele ser negro. Depois de ir embora, uma outra personagem reclama com ele, dizendo que não iria passar no ENEM por conta das cotas para negros. Depois o atendente volta e começa a “assombrar” os outros personagens, mostrando que ele tem que sempre lutar para ter seu lugar na sociedade. Ao decorrer da história, o atendente leva os outros personagens a se colocarem no seu lugar, mudarem seus pontos de vistas para perceberem o que é ser negro.

No quinto quadro, uma atriz entra, e no telão é projetada uma garota comendo o tempo todo. Atrás da cortina as pessoas começam a chamar a garota do palco para comer, ela não vai e começa a ficar nervosa, andando freneticamente pelo palco. Os pais continuam chamando-a, e ela acaba indo. Depois, voltam ela e mais uma personagem e começam a se inclinar em direção a plateia fazendo movimentos com as mãos que vão da boca até as pernas como se estivessem vomitando. Continuam formando composições com os corpos que nos remetem a bulimia, nos questionamos o que é ou não necessário, se só eu sou eu, por que querer ser igual a todo mundo? Seguir um padrão de beleza imposto pela indústria da moda? Para que seguir o corpo ideal, personalidade ideal e tantos outros ideais impostos pela mídia?

O sexto quadro fala sobre política. Um candidato a eleição entra e começa a saudar eleitores fanáticos por sua figura que chegam a chorar de emoção ao vê-lo. O candidato é todo irresponsável, não sabe nem mesmo o seu número e não fala nada que faz sentido. Mesmo assim, toda vez que abre a boca os eleitores batem palmas freneticamente como se ele fosse o detentor de toda a sabedoria. Na verdade, tudo o que ele promete são incentivos e suplementos absurdos a fim de “comprar” os votos dos eleitores. Semelhança com nosso cenário político atual não é mera coincidência. As promessas do tal candidato são tão absurdas, como “bolsa ladrão” e “bolsa facebook”, que chegam a ser engraçadas. O quadro fala também, na minha opinião, sobre ilusão, indignação, má distribuição da renda e desigualdade social. No cenário permanecem as cadeiras em que os eleitores estão sentados e o candidato discursa em cima de uma outra cadeira.

No sexto e último quadro, os personagens entram, se ajoelham perto da plateia e pegam gizes que estão embaixo dos nossos assentos. Eles começam a desenhar círculos no chão, dentre outras formas que me lembraram árvores, ao mesmo tempo passam no telão paisagens naturais (foi isso que me fez lembrar das árvores). Depois de ter o palco coberto de desenhos, os personagens vão saindo um por um. Depois um personagem entra com um colchão e deita nele. Outros personagens entram também com baldes pretos cheios d’água e começam a respingar sobre o personagem deitado. Ele acorda, levanta e diz que fez xixi na cama até os 12 anos. Fala do medo de crescer, de ter obrigações e responsabilidades. Nessa parte, a fala começa a ter uma carga maior que os movimentos. Os atores se juntam em um círculo segurando os baldes, todos virados para o público. E antes que percebêssemos o que iriam fazer, eles já estavam virando os baldes e molhando o palco todo, inclusive um pouquinho da plateia! A água começa a destruir os desenhos (muito legais) que eles tinham feito com giz. Na hora eu fiquei bastante chocada e chateada por conta da água estar estragando os desenhos. Imaginem minha surpresa quando os atores começaram a esfregar seus pés no chão para apagarem junto com a água os desenhos. Depois de um tempo eu acabei me conformando com o fato dos desenhos terem sumido. Esse quadro me fez pensar em um turbilhão de coisas que fica até difícil explicar. Acho que foi por que foi nele que eu comecei a formar conclusões mais concretas sobre como os quadros se ligavam e tinham relações entre si.

O quadro me lembrou de natureza, porque ela está em constante transformação, então nós, enquanto seres que compõem a natureza, estamos em constante transformação também. Nós temos esse poder de transformar as coisas, inclusive o mundo. Podemos construir e destruir e, por mais que a mudança seja difícil, ela é inevitável. Construíram todo um desenho legal e depois apagaram. A ideia de apagá-lo me gerou rejeição no início, mas depois eu acabei gostando da água no chão. O medo de crescer vem do medo da mudança, das transformações na nossa vida. Assusta pensar que seremos e não seremos os mesmos daqui a alguns anos. Não somos um único eu, temos vários “eus” dentro de nós, “eus” que podem ser influenciáveis, machucados e injustiçados, manipulados e iludidos, roubados e pressionados. Mas no fim, são só nossos. Ninguém tem um igual ou pode tirá-los. Estamos constantemente criando novos “eus”. Temos um monte de lados, que são um monte de consequências, de um monte de experiências particulares vividas por cada um. Quem sou afinal? Não sei, porque estou em constante mudança, criação e destruição. Percebi que eu tenho o grande poder de influenciar nos “eus” de cada um. Isso nos responsabiliza, isso nos instiga a agir de forma respeitosa com o próximo, porque o que eu falo não é o que ele escuta.

A peça me tocou muito, realmente gostei e foi realmente um desafio escrever essa resenha. Adiei o momento o quanto pude por que estava com medo de não conseguir demonstrar o quão grande é a mensagem que ela nos traz. Não que a mensagem seja única e exclusiva, a peça permite milhares de interpretações, porém, tenho certeza que cada uma delas tocou muito cada espectador.

por Isabella Damaceno

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