Se você também é desses que falou em casamento infantil lembra do Oriente médio na hora, este é um bom momento para desconstruir essa imagem. Em estudo publicado este ano pelo instituto Promundo, “Ela vai no meu barco” revela que “o Brasil ocupa o quarto lugar no mundo em números absolutos de mulheres casadas até a idade de 15 anos, com 877 mil mulheres com idades entre 20 e 24 anos que se casaram até os 15 anos (11%)”. No estudo, foi considerado como casamento tanto uniões formais como informais (religiosas, coabitações). A idade legal para se casar no Brasil é de 18 anos para homens e mulheres, caso tenham consentimento dos pais, ambos podem se casar com 16. Se gravidas, menores de 16 também podem se casar segundo o Código Civil Brasileiro. O estudo, que tem como foco “...as atitudes e práticas em torno do casamento na infância e adolescência nos dois estados brasileiros com maior prevalência desta prática, de acordo com o censo de 2010: Pará, no Norte, e Maranhão, no Nordeste. ”, revela com clareza as consequências da falta de educação de qualidade e outros serviços públicos eficientes como a saúde, na vida dos jovens brasileiros, com ênfase nas meninas.
Diferente do que acontece em outras regiões do mundo, o casamento infantil na América Latina acontece geralmente por escolha. Apesar de muitas vezes essas escolhas serem limitadas dependendo dos contextos socioeconômicos e diferenças de poder, as meninas que casam nessa idade, concordam com a prática. Você deve estar se perguntando: qual a razão de uma garota de 15 anos (média) abandonar a família e estudos para se casar com um homem, em média 9 anos mais velho, e se tornar responsável por afazeres domésticos, criação de filhos e satisfação do conjugue? Amor? Resposta errada. Os principais motivos listados pelas meninas entrevistadas são:
- Querem ter alguém que possa sustentá-la
- Querem ter alguém que possa dar presentes para ela
- Querem sair da casa dos pais para ter mais independência e liberdade
- Querem sair da casa dos pais para parar de ter conflitos em casa
- Querem sair da casa dos pais para parar de pesar no orçamento da casa
- Querem sair da casa dos pais para não cuidar mais da casa ou dos irmãos
- Querem ter alguém para dar proteção a ela
- Acham que os homens mais velhos são mais bonitos e interessantes, além de terem bom papo e serem mais carinhosos e responsáveis
- Acham que os homens mais velhos são mais respeitosos com ela
- Acham que casar com um homem mais velho faz a menina se sentir mais mulher
Nota-se que os motivos envolvem de uma forma ou de outra uma busca por um futuro melhor do que o presente que vivem. Outra pergunta nos assola então: qual a razão de meninas que têm educação de qualidade prevista por lei, assim como saúde, lazer, alimentação e outros inúmeros direitos ansiarem por proteção e estabilidade financeira num casamento? Muito simples, esses direitos não são de fatos cumpridos, o que acarreta, entre inúmeras consequências, a perpetuação da ideologia patriarcal e machista em algumas regiões no Brasil. Ao não terem acesso à educação de qualidade, nem mesmo orientação acerca da iniciação sexual, puberdade, ao não serem efetivamente protegidas contra abusos dentro de casa, ao não terem opções de lazer devidamente direcionadas a crianças e adolescentes, as meninas não têm outra saída senão o casamento para satisfazer essas necessidades.
Porém, na maioria das vezes, a expectativa de melhoria de vida que ansiavam não é correspondida. Nas comunidades onde a prática é comum, tem-se o marido como provedor e a companheira com o papel de criação dos filhos, afazeres domésticos e satisfação do marido. Mesmo em dificuldades financeiras, ainda não é aceito socialmente o trabalho da mulher fora do lar e o poder absoluto do homem sobre a esposa abre lugar, muitas vezes, para o abuso/violência doméstica.
“A maioria das meninas, entretanto, preferiria tê-lo [ casamento] feito numa idade posterior. É fundamental notar, também, que meninas não carecem de outros sonhos e aspirações. Pelo contrário, quase todas as meninas entrevistadas compartilham planos profissionais (como tornarem-se advogadas, enfermeiras ou policiais). Mesmo quando elas não têm aspirações de carreira ou quando têm seus planos de vida modificados, as meninas querem independência financeira e oportunidades que atualmente não enxergam como possíveis dentro de seus casamentos.”
Depoimento, homem de São Luiz, 19 anos, casado com menina de 13:
“É, assim, o que faz um homem se sentir realizado é o homem chegar em casa, encontrar a mulher, as coisas de casa tudo bem feitinha. A mulher não contrariar o homem também, né? Acho que é isso. […] Tipo, não desrespeitar… fazer as coisas “certinho” como o marido pede. Acho que isso deixa o homem muito feliz, agrada muito o homem.”
Por conta dessa ideologia, não somente as meninas (com seus motivos listados anteriormente), mas as comunidades em que estão inseridas influenciam e incentivam o matrimônio em idade precoce. A pesquisa detectou, em geral, os seguintes fatores motivadores:
- Gravidez guia decisões maritais
- Decisões sobre casamento como um desejo de controlar a sexualidade das meninas e limitar comportamentos percebidos como ‘de risco’
- Desejo de assegurar estabilidade financeira através do casamento
- Decisão marital como expressão da agência das meninas
- Decisão marital como resultado das preferências e do poder dos homens adultos, isto é, homens casam com meninas mais novas porque acham que elas são mais atraentes, o que faz com que eles se sintam “mais jovens”; homens adultos também detêm mais poder nas tomadas de decisão e são percebidos como “melhor de vida” do que homens jovens.
Outros fatores que influenciam o casamento, segundo a pesquisa, é a religião: evangélica/ protestante católica que predominam nas regiões onde foi realizada a pesquisa. As crenças promovem pensamentos como o “homem é a cabeça da casa”, como mostra entrevista feita com garota de 14 anos, Belém, que se casou com um homem de 20 anos:
“[…] eu sou evangélica. Na igreja eles ensinam muito essa questão que o homem tem que ser cabeça da família, ele tem que tomar as decisões mais importantes, sempre com ajuda da mulher. “
Além da religião, a mídia também é um fator motivador. O exemplo mais óbvio são as músicas, gêneros como funk e sertanejo são popularmente conhecidos por objetificar a figura feminina. Um dos entrevistados fala sobre:
“É verdade, e não só os homens, assim, querendo... Como a própria música já incentiva os homens, que hoje em dia as músicas mais falando de novinha, tipo incentivando os homens a ter relação assim com mulher mais nova. É música sertaneja, é funk, tudo falando de novinha.”
Alguns entrevistados também citaram a televisão como uma influência. As novelas “promovem normas de gênero que encorajam os homens a relacionarem-se com meninas”. Veja exemplo citado por entrevistada:
“Eles [os homens] querem ficar com essas meninas mais novas porque elas são mais fácil do que as adultas. Porque a adulta não vai cair na lábia deles, e as meninas novinhas assim, acham que aquilo é certo. O sexo, por causa da televisão, porque que vê dizendo “fiquei”, “a fulana ficou”, e elas acham que aquilo é verdade, aquilo que passa na novela.”
A pesquisa mostra que tanto homens quanto meninas com maior grau de escolaridade então menos propensos ao casamento na infância e na adolescência:
“Entre homens com nível máximo de ensino fundamental incompleto, 60 por cento afirmaram que uma mulher pode ter seu primeiro filho entre os 15 e os 17 anos de idade. Essa porcentagem caiu para 37 por cento entre homens com nível mínimo de ensino médio incompleto (p=0,003) que responderam à mesma questão.”
“A maioria das meninas com, pelo menos, ensino médio incompleto, acreditavam que meninas de 15 à 18 anos não devem interromper os estudos (98 por cento), em contraste com meninas que tinham até o ensino fundamental incompleto, (83 por cento) (p=0,001).”.
Concluímos então, através de dados concretos*, que o machismo no Brasil, bem como uma das suas consequências mais trágicas, o casamento infantil, tem suas bases, principalmente, na ineficiência dos direitos públicos. Por fim, o estudo propõe soluções para a questão, baseando-se na pesquisa de campo realizada, para entender melhor, confira na íntegra em:
http://promundo.org.br/wp-content/uploads/sites/2/2015/07/SheGoesWithMyBoat_PT_Final_15SET.pdf.
*Fonte: “Ela vai no meu barco” – Casamento na Infância e Adolescência no Brasil - ALICE TAYLOR GIOVANNA, LAURO MARCIO SEGUNDO, MARGARET GREENE.
Por Isabella Damaceno
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