Por: Isabelle Alves
Fonte: https://www.tribernna.com/2019/09/01/resenha-a-metamorfose-as-adaptacoes-e-os-planos-fracassados-da-vida/
Franz Kafka (1883 - 1924) foi um escritor pouco reconhecido em vida, cuja falta de confiança em si mesmo levara-o a desejar que suas obras fossem queimadas, mas que se imortalizou após sua morte. Atualmente, o autor é literatura indispensável nas escolas, e poucos são aqueles que não entendem quaisquer referências à sua mais famosa obra, sobre um homem que "[se encontrou] em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso".
A metamorfose – eis a genial obra! Enquadrada no gênero novela literária, traz, em si, características um tanto indefinidas e imprecisas. Situada entre o conto e o romance, a novela é maior do que o primeiro e menor do que o segundo. Caracteriza-se por conter vários enredos interligados em uma sequência cronológica, com multiplicidade de personagens, tempo e espaço, que são desenvolvidos de forma rápida na narrativa. Uma das particularidades instigantes desse gênero é que os personagens, em geral, são mais profundos e elaborados que no conto. Essa perspectiva de indefinição, imprecisão e profundidade torna-se especialmente interessante se forem associadas ao enredo criado por Kafka.
Sem mais delongas, o livro começa com o protagonista, Gregor Samsa, transformado em um inseto (grande para alguns, pequeno para outros), e o leitor descobre, juntamente com o narrador observador, as circunstâncias em que o fenômeno ocorre. Que inseto é este, ao leitor não é dado nenhum vestígio definitivo, e desde o início é perceptível a indefinição que será proposta ao longo da trama pelo autor: o que importava, segundo o gênio de Kafka, não era definir incontestavelmente a espécie, mas justamente expô-la ao constante questionamento.
É preciso aceitar, porém, que a causa jamais será explicada, e os personagens também pouco vão atrás de respostas, tal como é característico do Realismo Mágico – vertente na qual a obra é situada. Esse enredo, entretanto, só pode ser satisfatoriamente entendido quando analisamos os fatores externos à obra, olhando não para os personagens e os lugares da narrativa, mas para as pessoas e os espaços do período histórico em que Kafka estava inserido. O autor era um judeu, que escrevia em alemão, próximo à eclosão da Segunda Guerra Mundial. Ademais, nunca se sentiu realmente pertencente ao ambiente em que vivia, enfrentando severos problemas de convivência com o pai e em relação à vida amorosa, com noivados e amores infelizes - o que também se vê em Gregor.
Esse contexto possibilita ao leitor refletir acerca da transformação sob um novo ângulo: a metamorfose de um homem em um inseto, de um humano para algo desumano, a partir das incapacidades de se adequar ao que é imposto socialmente como características e deveres "humanoides". Porém, mesmo que a mudança seja uma forma de se excluir do mundo em que vive, ela também propicia ao inseto certa liberdade, pois, quando não se espera que o sujeito aja como humano mais, ele se vê livre das obrigações que sempre o atormentaram, seja Kafka com as relações interpessoais, seja Gregor com seu trabalho.
Não acabam aqui, no entanto, as possíveis interpretações para essa indecifrável obra. Como dito anteriormente, faz parte da essência d’A metamorfose que seu significado seja ambíguo, levando o leitor ao nível de reflexão a que ele se dispuser. Nesse sentido, outra possível explicação para o enredo – que pode coexistir com a análise anterior – encontra-se na inclinação de Kafka para os ideais socialistas. Dessa forma, temos A metamorfose na seguinte disposição: Gregor trabalha como um infeliz caixeiro-viajante e é o pilar para o sustento da sua família. Quando se vê na forma de inseto, seu primeiro pensamento é que não pode se atrasar para o trabalho e tenta, de diversas formas, comunicar-se com a família e com o chefe, na tentativa de manter-se ativo e produtivo. Entretanto, apesar de seus esforços, não consegue, logicamente, efetivar seu objetivo. E, a partir do momento em que Gregor perde o valor (financeiro) para a família, sua existência torna-se descartável – o que pode ser interpretado como uma forte crítica ao capitalismo: trabalha-se até que não sobre nada de si, para então ser deixado de lado.
Assim, independentemente de como se iniciou a situação, ainda é preciso analisar como os demais personagens reagem a ela. A figura do pai, como citado, nunca foi afetuosa para Kafka, e tal característica repete-se constantemente em suas obras. Visto por esse prisma, o Senhor Samsa interpreta, em A metamorfose, o papel daquele que repele o diferente, discriminando-o e agredindo-o. Grete Samsa – a irmã, por sua vez, representa a cuidadora, que aceita a nova figura de Gregor o suficiente para não o deixar morrer.
Dias decorrer-se-iam caso fossem citadas todas as possíveis vertentes analíticas que abrangem essa obra. Mais uma delas: teria Gregor cometido um ato incestuoso na noite anterior à sua transformação, motivo pelo qual narra tão descritivamente sua irmã? Teria sido por isso que sua irmã vestiu-se de forma incomumente lenta, e irritou-se ao ver a imagem de uma mulher no quarto do irmão, após a expectativa do "dia seguinte"?
A verdade é que a leitura é uma proposta interacionista, e que um texto pode possuir intrincados significados e que o leitor tem a prerrogativa de ir em busca deles. Kafka era socialista, e por isso vemos claramente uma crítica ao capitalismo na obra. Se Kafka fosse homossexual, escritor contemporâneo, sem dúvidas a metamorfose enquanto revelação da sexualidade de Gregor seria uma interpretação comum. Uma abordagem voltada ao protagonista e às doenças psicossomáticas poderia diagnosticá-lo com depressão.
Portanto, apesar de ser impossível saber se essas teriam sido as intenções do autor, ainda permanecem em sua escrita os elementos que possibilitam ao leitor receber essa história por múltiplas perspectivas. Para isso, basta que se abra o livro, físico ou virtual, e aprofunde-se em suas palavras na busca dos misteriosos significados que elas nos proporcionarão.
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